Antigamente o casamento era indissolúvel e só ele constituía a família legítima. Os relacionamentos informais e extramatrimoniais não eram reconhecidos pela sociedade, tampouco eram juridicamente tutelados.

Nesse contexto social, havia distinção entre filhos pela origem do vínculo (filhos legítimos, ilegítimos ou adulterinos), de modo que nas relações familiares prevalecia a centralidade do matrimônio, sobrepujando o aspecto afetivo e até mesmo a origem biológica do indivíduo.

Com a evolução da sociedade e dos costumes, o ordenamento jurídico passou a permitir a separação e o divórcio, bem como o reconhecimento das uniões informais.

Diante disso, as famílias ganharam formatos diferentes.  Atualmente podemos encontrar famílias formadas não só pela a união formal do casal, mas também as uniões estáveis, as sociedades de fato e as famílias monoparentais.

O surgimento das famílias “reconstruídas”, formadas pela união da mãe biológica com o padrasto ou do pai biológico com a madrasta, em que os filhos passam a ter vínculo de afetividade formado por estas junções, deu origem à pluriparentalidade ou multiparentalidade, ou seja, a possibilidade da convivência da filiação biológica e da filiação estabelecida pelo afeto.

Para a professora Maria Berenice Dias, “diante do atual conceito de parentalidade socioafetiva, imperioso admitir a possibilidade de coexistência da filiação biológica e da filiação construída pelo afeto. E não há outro modo de melhor contemplar a realidade da vida do que abrir caminho para o reconhecimento da multiparentalidade. Afinal, não há como negar que alguém possa ter mais de dois pais.”[1]

A legislação brasileira não prevê expressamente a possibilidade de uma pessoa possuir dois pais ou duas mães, porém, de acordo com o entendimento do STF não se pode negar a proteção a situações de pluriparentalidade.

O ministro Luiz Fux, em seu voto como relator no RE 898060, considerou que o princípio da paternidade responsável impõe que tanto vínculos originados da ascendência biológica quanto os de filiação construídos pela relação afetiva devem ser acolhidos pela legislação. De acordo com o ministro não há impedimento do reconhecimento simultâneo para as duas formas de paternidade. Para ele, o reconhecimento de outros modelos familiares pelo ordenamento jurídico, diferente do tradicional, não autoriza decidir entre a filiação afetiva e a biológica quando o melhor interesse do descendente for o reconhecimento jurídico de ambos os vínculos.

 “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com todas as suas consequências patrimoniais e extrapatrimoniais”.[2]

Esta posição adotada pelo STF já era reconhecida pela doutrina: “Não mais se pode dizer que alguém só pode ter um pai e uma mãe. Agora é possível que pessoas tenham vários pais. Identificada a pluriparentalidade, é necessário reconhecer a existência de múltiplos vínculos de filiação. Todos os pais devem assumir os encargos decorrentes do poder familiar, sendo que o filho desfruta de direitos com relação a todos. Não só no âmbito do direito das famílias, mas também em sede sucessória. (…)”[3]

Hodiernamente, padrastos e madrastas que assumiram as responsabilidades naturais paternas ou maternas foram autorizados a inserir o nome deles no registro de nascimento do filho ou da filha afetivos.

De acordo com esse entendimento não cabe estabelecer uma hierarquia entre a filiação afetiva e a biológica, devendo ser reconhecidos ambos os vínculos, quando isso for o melhor para os interesses do descendente.

Como afirma o Min. Fux: “Não cabe à lei agir como o Rei Salomão, na conhecida história em que propôs dividir a criança ao meio pela impossibilidade de reconhecer a parentalidade entre ela e duas pessoas ao mesmo tempo. Da mesma forma, nos tempos atuais, descabe pretender decidir entre a filiação afetiva e a biológica quando o melhor interesse do descendente é o reconhecimento jurídico de ambos os vínculos. Do contrário, estar-se-ia transformando o ser humano em mero instrumento de aplicação dos esquadros determinados pelos legisladores. É o direito que deve servir à pessoa, não o contrário.”[4]

Esse precedente do Supremo Tribunal Federal tende a influenciar outras decisões judiciais.

Recentemente o juiz Gustavo Abdala Garcia De Mello, da 2ª Vara de Itápolis, julgou procedente o pedido de reconhecimento judicial do vínculo de filiação socioafetiva a um padrasto. No caso em tela a requerente ficava aos cuidados da avó, pois os pais moravam e trabalhavam em diferentes cidades. Com o falecimento do pai, foi restabelecido vínculo de convivência com a mãe e o padrasto assumindo a posição de pai.

De acordo com o magistrado, não é necessária a exclusão do pai biológico no registro, pois não houve abandono ou preterição injustificada de sua parte.

Justifica o Magistrado seu entendimento na “realidade socioeconômica do país e outras vicissitudes da vida, não raro, obrigam os pais a buscarem o apoio de parentes ou amigos, que acabam assumindo posição decisiva na educação e sustento dos filhos (…) a melhor solução é consolidar a dupla filiação – biológica e socioafetiva (…)”.

Consequentemente, a filha passou a ter dupla filiação paterna, denominada multiparentalidade.

Cite, ainda, outra decisão proferida pela juíza Patrícia Érica Luna da Silva, da Vara Única de Teodoro Sampaio. Neste caso, a mãe, representando a filha menor, pedia a comprovação da paternidade para a exclusão do nome do pai socioafetivo e inclusão do genitor biológico.

Contudo, a decisão manteve o nome do pai efetivo, sem prejuízo da inclusão do nome do pai biológico no assentamento de nascimento da filha.

De acordo com a magistrada sentenciante, não há como impedir que o pai biológico exerça seu direito de ser pai, conforme manifestado por ele, porém sem desconsiderar o laço de afeto estabelecido entre o pai socioafetivo e a criança, ainda que dificultado após a separação do casal.

Neste sentido, conclui a juíza: “Portanto, diante da realidade que se apresenta, de forma a privilegiar a dignidade, a igualdade e a identidade, vê-se que o reconhecimento da dupla paternidade é de rigor”.

Dessa forma, determinou-se a retificação do assento de nascimento da criança para a inclusão do nome do pai biológico, sem a exclusão da paternidade do pai socioafetivo, passando a constar a dupla paternidade.

Convém ressaltar, no entanto, que o reconhecimento da multiparentalidade não visa a atender simplesmente o interesse do pai ou da mãe, mas principalmente o interesse da criança.

Neste sentido, decidiu a 3ª turma do STJ, ao negar o reconhecimento da multiparentalidade por verificar que a ação de investigação de paternidade, com pedido de retificação do registro da criança, foi ajuizada unicamente no interesse da genitora, que pretende constituir família com o pai biológico e “para tanto, tem-se valido da criança, forçando artificial aproximação”.

A decisão do STJ está embasada, principalmente, em estudo social produzido durante a instrução probatória, que comprova, conforme o voto do relator, que a criança tem sido assistida material e afetivamente pelo pai socioafetivo, que claramente afirma que continuará dispensando amor e carinho necessários à filha, ao contrário do pai biológico que além de não demonstrar afeição, afirmou à assistente social que seria indiferente a alteração do registro da criança.

Para o ministro relator, Marco Aurélio Bellizze, na atualidade, a afetividade é o principal fundamento das relações familiares, consequência da constante valorização da dignidade da pessoa humana: “Passa-se, portanto, a entender a família como um meio para se alcançar a felicidade, despontando o conceito de família eudemonista, isto é, a família é um instrumento para a busca da felicidade, exercendo um papel fundamental para se buscar o bem-estar e a plenitude do ser humano.”

Concluiu, então, o eminente relator que reconhecer a multiparentalidade [no interesse exclusivo da mãe] seria “homenagear a utilização da criança para uma finalidade totalmente avessa ao ordenamento jurídico, sobrepondo o interesse da genitora ao interesse da menor”. E acrescentou: “Levando-se em consideração que a presente ação foi intentada pela menor absolutamente incapaz, representada por sua genitora (reafirme-se, no interesse próprio desta), deve-se ressalvar o direito da filha de buscar a inclusão da paternidade biológica em seu registro civil quando atingir a maioridade.”

Verifica-se, portanto, que os princípios da dignidade humana, da proteção integral à criança, em harmonia com a afetividade e convivência familiar, norteiam a doutrina e a jurisprudência, ao reconhecerem as diversas formas de famílias e de parentalidade, com todos os seus efeitos, pois muito mais que mera relação genética, família é afeto, amor e união de seus membros.

[1]http://www.mariaberenice.com.br/manager/arq/(cod2_13075)MULTIPARENTALIDADE__Berenice_e_Marta.pdf

[2] Inteiro teor da minuta do voto do RE 898060.

[3] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 6ª ed. São Paulo: RT, 2010, p. 370.

[4] Inteiro teor da minuta do voto do RE 898060

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